Assisti Deserto Feliz, do Paulo Caldas. Bom filme, com o inconfundível selo pernambucano. Um cinema de grandes ambições. Um cinema sério, refletido, inovador. Pronto. Como dizia Marcelo Nova, do Camisa de Vênus, agora que enchi o hélio de vocês vamos arriar as calçolinhas e vamos lá.
Esta linha "social" do cinema pernambucano está parecendo (viva o gerúndio! abaixo o arruda!) oportunismo e masturbação intelectual. Os cineastas pernambucanos são, de longe, os que possuem uma consciência política mais arrojada atualmente e, por isso mesmo, devem se cuidar para não vulgarizarem essa qualidade em troca de afagos da comunidade crítica e de prêmios pré-pagos. Seus filmes começam a ficar chatos.
Penso nisso há algum tempo. O processo de financiamento e produção de cinema no Brasil está alijando a preocupação com o público. Tá legal, o artista deve ser "fiel sobretudo a si mesmo". Ok, ok. Mas... isso não pode virar senha para filme e para livros pra boi dormir. Eu penso assim. Gosto de Truffaut, Bergman, Antonioni, Godard, mas gosto mais de uns filmes que outros. Gosto menos dos enfadonhos. Naturalmente, tenho meu gosto pessoal. Eu entendo um pouco, dá licença. Gosto dos filmes com diálogos exuberantes, criativos. E com ação. Eisensten, por exemplo, é o máximo. O Encouraçado Potenkin, caralho, é uma das maiores obras-primas da história do cinema mundial. Charles Chaplin fazia mudos ou quase mudos cheios de humor, ação e crítica política. A trama de Marca da Maldade (Touch of Evil) de Orson Welles é magnífica, envolvente e criativa. Não esqueçam de Ao Sul do Meu Corpo, de Paulo Cezar Saraceni.
De qualquer forma, parabéns ao Paulo Caldas por essa contribuição ao cinema brasileiro. Fica registrado o alerta, contudo. A última leva de filmes pernambucanos é toda de prostitutas menores, pobres coitados explorados. Baixio das Bestas, do Claudio Assis, tem uma protagonista similar à de Paulo Caldas, a menor prostituída. O filme de Assis é mais voluptuoso, o de Caldas é mais delicado, com um toque realista mais terrível.
É importante, sobretudo, um enriquecimento literário deste cinema. Os diálogos estão tendendo a um popularesco clichê, caricatural. Colocar personagens falando palavrão já não é transgressão. As tramas precisam ser mais sofisticadas. Invistam em roteiristas!
*
Entrem no site, vejam o filme. Cocalero é um dos documentários políticos mais bem elaborados que já assisti. A trajetória de Evo Morales, de líder sindical dos produtos de coca no altiplano boliviano, a uma das maiores lideranças políticas da América Latina. É impressionante a semelhança entre a luta de Morales e a de outras lideranças populares no continente. Sempre com a imprensa nos calcanhares. Sempre lutando contra preconceitos atávicos, terríveis. Evo Morales, sem formação escolar completa, revela-se uma das inteligências mais finas, mais terríveis, de seu país. Não só isso. A generosidade, a vitalidade, a transparência de seus ideais, a franqueza de suas palavras, a força de seu amor pela Bolívia, pelos índios e pelos cocaleros, a riqueza humana de Evo Morales conquista os corações mais duros. Sua vitória nas eleições presidenciais representa um grande marco na história da América Latina. Por isso, acho um absurdo, um crime histórico, a crítica que o Globo, Miriam Leitão, e todos esses lacaios do imperialismo no Brasil, fazem à importância de Morales para a Bolívia e para todos nós. Alguns setores da imprensa chegaram a sugerir que o Brasil agredisse economica e politicamente a Bolívia por causa dos investimentos da Petrobrás no país. Por causa de míseros 200 milhões de dólares. Míseros porque o Brasil faturou muito mais em cima do gás barato boliviano, vendido ao Brasil por menos da metade do preço internacional. Graças a Deus temos o Lula, que não deu ouvidos aos mastins midiáticos. Se desse ouvidos, aliás, só teríamos prejuízo, com corte de abastecimento às indústrias brasileiras e crise econômica e social na Bolívia. Os dois lados sairiam perdendo com esse súbito, inusitado e hipócrita patriotismo pró-Petrobrás de meia dúzia de colunistas furiosos.
Morales é dono de uma personalidade carismática que surge talvez apenas de 50 em 50 anos em cada país. Viva Morales! Viva os cocaleros! Estamos contigo, hermano!
O diretor de Cocalero, Alejandro Landes nasceu no Brasil e criou-se no Equador. Como milhares de intelectuais dessas bandas, que assistiram a um terrível processo de degradação social, política, cultural, universitária e econômica, Landes foi estudar nos Estados Unidos. Não perdeu suas raízes, todavia e o resultado é esse filme lindíssimo, um documentário com o tesão de um thriller político, realizando com humor, técnica magistral, sentido trágico e uma dilacerante paixão pela coragem e heroísmo dos índios bolivianos.
A grande virada no sindicalismo do MAS, Movimento ao Socialismo, partido de Morales, acontece quando recebe, pela primeira vez, apoio dos antigos e poderosos sindicatos mineradores, até então distantes, com seus motivos, da política partidária tradicional. Os mineiros, identificando em Morales um sujeito que representava verdadeiramente seus interesses, e não apenas uma esquerda acadêmica, cedo ou tarde comprada ou banida pelas oligarquias, decidem apostar em sua campanha eleitoral. São sindicatos organizados, decididos. O rosto dos sindicalistas mineiros presentes a uma reunião de campanha, severo, trágico, solene, indica que forças sociais muito profundas haviam se mobilizado para dar vitória a Morales.
É impressionante ainda o registro de populares do estado de Santa Cruz gritando impropérios racistas no aeroporto, no momento em que Morales embarca. Índio imundo! berra um rapaz. Entrevistado rapidamente pelo cinegrafista, o moço diz que o país não pode ser governado por um índio. Isso num país em que mais de 80% da população é índia ou descendente direta!
A entrevista de Morales à uma apresentadora de TV também é emblemática. A moça pergunta porque Morales chamou Chávez de comandante durante um comício anti-neoliberal em Buenos Aires. Morales explica que presidentes são chefes das forças armadas de seus países e, portanto, também podem ser chamados de comandantes. Todo presidente é um comandante.
Chamado a participar de uma conferência militar, Morales enfrenta a alta oficialidade do exército boliviano, todos brancos, de óculos rayban, abanando a cabeça irritadamente, com uma impaciência carregada de preconceito, brutalidade e reacionarismo. Uma repórter pergunta se ele respeitará a hierarquia das instituições militares. Morales responde, altivo, que, eleito presidente, as instituições militares é que terão que responder a ele, porque o presidente é o chefe do exército.
O longa tem cenas impagáveis, como quando Morales mostra foto dele mesmo junto com Fidel e Chávez e diz ao cinegrafista: el eje del mal, cuidate hermano! Também é ótima a cena de Chávez em Buenos Aires, vociferando "Alca al carajo!" e sendo ovacionado por dezenas de milhares de pessoas.
Enfim, é um belíssimo filme, que deveria ser exibido em universidades, escolas, sindicatos, por todos que desejam conhecer, sem o filtro ideológico e preconceituoso de nossa mídia, a apaixonante dinâmica política de nosso vizinho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário